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sábado, 25 de outubro de 2014

A TRAIÇÃO DE ED CAOLHO

Este não é um conto necessariamente de terror. Mais informações no final do post.

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Os boatos diziam que a ilha era tomada por espíritos, por isso todos a temiam. Lendas são apenas lendas, eu repetia em pensamento a mim mesmo enquanto fazia o máximo que podia para acreditar que os murmúrios fantasmagóricos que vinham detrás de mim eram de alguns marsupiais a pular de árvore em árvore. Talvez a ilha realmente fosse cercada por espíritos, e os mesmos fossem daqueles que por medo das superstições evitaram buscar alimento na floresta ao se verem presos aqui. Em algum momento eu teria de me levantar da areia, parar de encarar o mar tranquilo como vinha fazendo há horas, e explorar o lugar em busca de mantimento.

Era uma situação perigosa onde cada movimento poderia definir meus últimos momentos de vida. Não que eu esteja aqui há uma eternidade, mas ainda assim me pergunto como uma viagem repleta de conversas e piadas entre amigos se transformou em um motim que me isolara em uma Ilha peculiar e deserta – na pior das hipóteses habitada por seres infernais – como esta. Começara com uma traição.

Rumávamos em direção ao porto de Edwiges ao norte de San Paolo. Todos alegres e aquecidos pelo rum que era tão farto quanto a água lá fora. Uma festa para comemorar o saque a um navio dos Roscharch, ricos e mesquinhos produtores de bebidas do continente vizinho. Navegar pelas nossas águas foi ingenuidade demais e não podiam passar ilesos. Ainda que entornássemos os barris sobre nós durante toda a viagem teríamos o suficiente para vender em terra seca pela metade do preço e receber moedas de ouro o bastante para navegar apenas por diversão.

As viagens eram demoradas e por vezes vagávamos a esmo em busca de alguma vítima para saquear. Era impossível não se sentir abatido pela saudade. Queria ver minha filha, a pequena jamais poderia recuperar o tempo que não dediquei a ela por estar me arriscando em alto-mar. Queria ver minha esposa, Rute era do tipo de mulher hipnotizante, sua beleza destruía o mais grosso escudo de qualquer guerreiro. Ela era meu ponto fraco em todas as viagens, e tudo o que eu mais desejava – antes mesmo do ouro – era poder regressar e vê-la novamente.

E de certa forma agora eu podia vê-la. Rute estava de costas com um longo pano de cetim vermelho cobrindo seu delicado corpo. Eu a idolatrava com os olhos como fizera desde a primeira vez que a vi. Seus quadris se moviam devassos, me seduzindo pouco a pouco. Em seguida ela deixou o pano cair mostrando suas curvas tentadoras. Virou a cabeça levemente para que pudesse me ver, sempre gostou de me tentar e observar como eu reagia. Piscou sensualmente e mordeu os lábios como que me convidando. Levantei-me como um cão atraído pelo cheiro de carne. E bem quando meus lábios tocariam seus ombros um barulho me acordou.

Quando me levantei o caos havia tomado conta do navio. De início suspeitei que algo como Leviatã estivesse a tentar tombar a embarcação, mas logo percebi que a ameaça era mais humana e menos sobrenatural – o que, se permite dizer, soa muito mais assustador.

Admito que um pirata não tenha a melhor índole para falar sobre honra, mas eu vinha sendo o capitão do grupo fazia anos. Nunca esperei acordar e me deparar com irmãos cortando as cabeças uns dos outros. Um grupo lutava em meu nome enquanto os outros eram liderados por Ed Caolho.

Lembro-me de quando este moleque apareceu com a mão ensanguentada no rosto correndo pelo vilarejo. Chorava e berrava que lhe arrancaram um olho como punição por roubar frutas dos vendedores no centro. Eu lhe fiz curativos, lhe dei abrigo, lhe dei comida e uma profissão, lhe dei até mesmo um olho de vidro para que não ficasse com aquele vão enegrecido na cara como se fosse uma aberração de circo. E o que recebi em troca anos depois foi aquele escarcéu a me acordar.

Gritei para que cessassem a briga, mas foi em vão. Os piratas se moveram deixando que o caolho passasse e se aproximasse de mim. Ed me apontou sua afiada espada e determinou:

- Duelo... ou a Ilha.



A Ilha era bem conhecida por todos da tripulação, mesmo que não tivesse nome. Era assim para que não tornássemos amaldiçoada qualquer palavra utilizada para definir aquele lugar. Diziam que a Ilha era dominada por nada mais que demônios e espíritos que juntos digladiavam pelo controle do mórbido lugar.

Eu sabia dos buchichos que vinham correndo do convés à proa havia semanas. A conspiração exalava em cada olhar, em cada riso e em cada passo. No entanto jamais imaginaria que viria de alguém tão próximo. Bastou que o rum entrasse para que a verdade saísse. O grande traidor era o homem que eu criei como filho.

Um dos piratas me arremessou uma espada. Eu tinha de ensinar uma lição ao garoto – que por tanto tempo eu neguei o fato de ter crescido e agora ser um homem sem honra alguma.

As espadas se chocaram tinindo como uma bigorna ao receber marretadas de um ferreiro. Todos os outros cessaram suas brigas para nos observar. Caminhávamos tentando desferir golpes um no outro enquanto os homens iam se movendo e formando um ringue humano. Um desvio equivocado e um corte se abriria declarando um vencedor e um perdedor.

Mesmo com os lados definidos era nítido no olhar de cada um como todos se divertiam com a briga. Independente de quem vencesse, o espetáculo estaria completo quando o sangue jorrasse para todos os lados. Para a decepção daqueles olhares famintos por morte não foi exatamente assim que se deu o fim da luta.

Em um golpe baixo, Ed acertou minha mão criando assim um fino corte por onde uma solitária gota de sangue correu. Pequeno, porém incomodo o suficiente para que meus dedos afrouxassem. Com um último golpe ele acertou a lâmina de minha espada arremessando-a longe. Um golpe na coxa e caí de joelhos. Sua lâmina encostou perigosamente em meu pescoço.

E então tínhamos um vencedor, e claro, um perdedor.

Aproximávamo-nos cada vez mais da Ilha e não me restava outro destino senão a prancha.

Pus o primeiro pé na longa madeira a minha frente e respirei como se aquela fosse a última vez que meus pulmões poderiam saborear o oxigênio. Era o fim. Olhei para trás para receber o olhar de desprezo de Ed que mantinha sua espada embainhada.

- Tenho esposa e filha – eu disse.

- Não me interessa. Caminhe e sele teu destino – ele respondeu amargo com os dentes repletos de tártaro expostos em um sorriso medonho. Ele ria pelo álcool, mas seus olhos demonstravam certo arrependimento. Anos de amizade em incontáveis viagens destruídas por uma bebedeira onde desejos obscuros foram permitidos florescer.

- Você era apenas uma criança.

Seu rosto pareceu paralisado. Bastou uma frase para que inúmeras memórias o atingissem e forçassem contra a insensatez e ganância trazida pelo rum.

- Você se lembra de como eu te recebi quando nos vimos a primeira vez e implorou por minha ajuda, Ed?

Ele abaixou a cabeça e seu semblante era pensativo.

- Com um abraço – respondi. Virei rapidamente agarrando-o e mantendo seus braços presos junto ao corpo. Ele se debateu e com meu peso nos arremessei dentro da agua. Ainda submersos agarrei-me em seu pescoço como escorbuto nos lábios de um pirata despreparado. Ele tentava se livrar, mas minha fúria parecia ter me dado forças sobrenaturais.

De repente ouviu-se um grito. Talvez fosse uma gigantesca porta para o Inferno se abrindo. Poderia ter sido um riso vindo da boca do próprio Lúcifer. Quem sabe fosse um latido desumano de um Cérbero. A única coisa certa era que o som desagradável era assustador e com capacidade de meter medo no mais experiente guerreiro.

- Os espíritos! – gritaram os piratas do navio. – Os malditos espíritos estão a se revirar em busca de carne humana!

E assim eles forçaram o navio a retroceder afastando-se. Eu e Ed Caolho tentamos nadar para alcançar a embarcação, mas foi inútil. Os braços já haviam gasto toda a energia durante o confronto corpo a corpo. Seguir em frente na busca predestinada ao fracasso de adentrar novamente no barco era tolice demais – principalmente considerando a presença de tubarões quando chegássemos ao oceano de verdade.

Nadamos em direção a terra seca na praia.


Nada nos restou que não sentar e esperar. Sabíamos que os piratas traidores não iriam regressar – talvez os que me apoiaram e os que apoiaram Ed Caolho se matassem no caminho em busca de um novo líder ou por causa de todo o Rum que restara no convés. Mas o tempo passava e o Sol começava a se por com um tom alaranjado onde a água parecia despencar em um precipício.

Levantei-me e limpei a areia que grudara em minhas pernas. Talvez minha esposa e filha jamais vissem o pai de novo. O fim já me tinha sido entregue, que a sorte me guiasse a partir dali então. Dei um suspiro profundo e olhei para meu companheiro de exílio.

- Uma hora vamos ter quer comer – disse.

Ele me olhou com desprezo e cuspiu em frente aos meus pés. Ignorei e caminhei até estar de frente a entrada coberta por árvores e folhas gigantescas.

- Para o Inferno com sua ousadia – o ouvi gritar e caminhar desajeitado pela areia fofa vindo em minha direção. – Porém ao menos juntos teremos alguma chance.

E unidos adentramos deixando que o verde da floresta encoberta por uma aura misteriosa nos tragasse.
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Post Scriptum:
Este conto foi escrito para um projeto pessoal de escrita criativa. Em suma, alguém me estipulou um tema e/ou um prazo. A ideia é escrever sem pensar; sentar na frente do computador e deixar a história se escrever sozinha.
Este conto foi escrito em 2 horas e o tema era "Motim"

2 comentários:

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